segunda-feira, 22 de junho de 2009

Páscoa de 09

Amigos e Patrícios

Permiti-me que vos trate assim; á boa maneira da nossa terra.
Daí a ousadia minha e, creio, com permissão vossa, no uso desta forma de tratamento que exclui o excesso de cortesia sem, contudo, deixar de ser cortês.
É tratamento de cavaleiros em campo descoberto.
É, em suma, um assomo da nossa grande alma transmontana.
Quem aqui está perante vós viu, pela primeira vez, a luz do dia ali no Seixo através dum telhado esburacado pelos ventos gelados do alto do Cadaval e Fiolhoso e lavou os cueiros nas águas da Ribeira onde o Tinhela descansa para moer o centeio que às gentes de Murça, enrijece os músculos para a exigente luta da vida que se irá seguir.
Parti muito cedo, como alguns de vós, com imensos sacrifícios e tremendas privações de meus pais, primeiro á procura da instrução possível e, depois, na luta por um futuro melhor que as condições de vida da nossa terra não me poderiam proporcionar.
Humilde e simples daqui saí, simples e humilde cá tenho vindo, sempre que posso, tentar pagar, assim, o meu ingénuo tributo ás raízes.
Como gostaria de encontrar, também agora aqui, companheiros de infância, alguns guichos como corais, que, com a mão moldada ao cabo da enxada, por cá se foram candidamente perdendo na estreiteza do horizonte e/ou na inércia do pensamento.
Resta-me, apenas, uma tremenda frustração por estar naqueles mais ousados que, com ambição, ideias e convicções, com o coração destroçado, daqui abalaram à procura de uma vida melhor mas sempre que puderam cá voltaram na tentativa de semear a esperança no vento agreste que, por vezes, por aqui foi passando.
Sou, assim, como muitos que aqui estais e outros que não puderam ou não quiseram vir, um emigrante dentro do próprio País.
E, quem somos nós, aqueles que há pouco apelidei de emigrantes, e que por esse Portugal fora e por esse Mundo além, dizemos com redobrado orgulho a quem nos pergunta: Sou transmontano, mas, sou de Murça!
É que, neste mundo atribulado e complicado em que vivemos, ser transmontano é uma honra, mas, ser transmontano de Murça é um privilégio que só a nós cabe.
Somos por isso, ou por causa disso, os transmontanos de Murça, ou, os transmontanos de Porca de Murça, um pouco por aí fora, do que são as gentes simples e puras que por cá vivem e ainda caracterizam a nossa terra.
Todos sabem que a lealdade e franqueza ainda são, porque sempre foram, apanágio da nossa gente rude mas duma bondade rígida.
Dizem que temos o coração perto da boca e, é verdade...
Mas todos sabem também que os naturais de Murça, fustigados pelos ventos frígidos da Terra Fria ou caldeados nas encostas ajardinadas de videiras da Terra Quente, são duma verticalidade quase total; nem ao saudar os amigos costumam dobrar a coluna e bater com o queixo no joelho; por maior importância que pretendam atribuir á saudação têm por uso caracterizá-la, acompanhando as frases rituais, com o levantar do chapéu e o erguer dos olhos ao céu; saúdam, assim, o amigo duma forma chã pedindo para ambos, respeitosamente, a bênção dos Céus.
O natural de Murça é trabalhador...
Trabalha; trabalha muito; labuta com ardor; vence a maior parte das vezes, mas a respeito de reverenciar em demasia os chefes, juntar, como já disse, diante deles o queixo com os joelhos, nada feito.
É transmontano e, dentro deste Reino Maravilhoso como alguém lhe chamou, é de Murça...
E, quem reúne em si estes dois ditosos privilégios, não pode ser discípulo de ninguém.
Sempre renitentes, os filhos da nossa terra, apenas consideram naturais e legítimos os ditames da sua consciência filtrados na rusticidade da sua alma.
O Murçaense puro tem claridade nos olhos, tem calor no coração e quando estende a mão a um amigo aperta-a com rusticidade mas, também, com delicadeza.
Quem quiser saber o que é delicadeza deve conviver com a gente rústica e humilde da nossa terra.
Se conseguir merecer a sua confiança verificará então que o puro Murçaense se não é polido por fora é polido no cerne como os castanheiros de Jou ou os carvalhos das margens do Rio Tinhela.
Os fortes vínculos da maior parte desta grande família Murçaense transcendem, nalguns momentos, como todos sabeis, os do próprio sangue. São laços que nos prendem e nos unem para além deste torrão natal, que nos arrebanham e apertam no círculo interno e comum de quantos viram a luz pelas encostas ajardinadas de videiras da Terra Quente ou pelos montes frígidos da Terra Fria; ambos nos tutelam e preservam...
Tudo isso por todos reconhecermos haver em nós o supremo sentimento de um parentesco natal, outorgado pelo torrão comum que nos serviu de berço.
Não pretendemos, com tal, cometer o erro de, pelo arreigado amor a esta nossa terra, vir aqui alardear a imagem privilegiada de um estreito clubismo provinciano. Nada disso e, sobretudo, muito longe disso...
Nenhum de nós, na evidência permanente da influência das nossas raízes, traz qualquer marca de origem na lapela do casaco ou na fita do chapéu.
Por razões genéticas, geográficas, étnicas, históricas ou quaisquer outras que não enquadradas na nomenclatura convencional, os naturais de Murça, estão de origem, e quase sem disso se aperceberem, imbuídos de uma vincada personalidade individual e colectiva.
O indisfarçável isolamento, a dureza do chão, os rigores do clima agreste -no frio e no quente- e a quase unânime aceitação da limitação dos horizontes, acabaram por imprimir aos nossos ascendentes, uma fisionomia pessoal que nenhuma influência exterior conseguiu, até hoje, desfigurar no essencial.
Sedimentaram-se nas suas personalidades, nas parcelas e na soma, séculos de obstinação, de brio, e sobretudo, de forte, sentida e praticada solidariedade.
Pois, em comum:
· Lavraram, semearam, ceifaram, moeram, cozeram e saborearam o pão negro de centeio;
· Fragmentaram o xisto duro, arrotearam extensões, e plantaram encostas íngremes ou vales suaves;
· Enxertaram, pulverizaram, vindimaram, pisaram, envasilharam e apreciaram, quase sempre em tertúlia de amigos e pecadores do mesmo pecado, celebrando solenemente a vida num copo do nosso excelso vinho;
· Em suma, permanentemente perseveraram e colaboraram irmãmente, quisessem ou não; e quiseram quase sempre...

Essa fraternidade, constantemente sentida e assumida, foi arreigando nas suas consciências e nas suas posturas uma forte teimosia voluntária e uma irmandade de abelhas do mesmo enxame embora, nem sempre no mesmo cortiço. Irmandade essa sem quaisquer limites, de que todos nos orgulhamos e nunca ninguém ousou duvidar ou desmentir.
Tendo em atenção os atributos das gentes de Murça que, com o coração descrevemos, é urgente acreditar e dar cada vez mais oportunidades aos homens bons da nossa terra. Desde sempre deram prova evidente do seu real valor e até, nos últimos tempos, a sua vincada iniciativa e influência no progresso da nossa terra têm sido valiosas.
E nós, os que mourejamos por outros sítios, devemos cá vir mais vezes conviver com as nossas gentes e conhecer melhor a nossa terra.
Dispersos por novas paragens, de horizontes tão diversos, nunca devemos trair o berço humilde onde grande parte de nós nasceu, escondendo a nossa nobre origem montesinha.
Enfrentemos as imensas adversidades do dia de camisa aberta e peito escancarado como escancarada está sempre a porta das nossas casas de origem.
Mostremos uma permanente afeição á nossa infância, á nossa gente simples e ao nosso pequeno torrão escondido para aquém do Alto do Pópulo.
Respeitemos a gente humilde da desta terra, alfobre de grandes inteligências muitas vezes mantidas obscuras ou incultas pela acção tendenciosa de alguns regedores e quejandos ou pelo não exploração dos imensos recursos do nosso concelho.
Finalmente, pedindo perdão por esta confissão de Páscoa feita em ambiente familiar, resta-me apelar à vossa costumada tolerância rogando a misericórdia de uma penitência leve.
Que a neófita associação Amigos de Murça seja a razão e a alavanca da nossa união, os laços da nossa aqui comprovada amizade fraterna e o amor antigo a esta terra de Murça e às suas laboriosas gentes.
Bem Hajam
Eduardo Natividade

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